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quinta-feira, 8 de maio de 2014

O Bom Cretino

(Laíza Hortencio Gomes)


Na porta do prédio acendia o último cigarro do seu maço, imaginando se teria tempo de comprar um novo maço antes que o comércio fechasse, enquanto isso, o idiota do RH se despedia sorridente ao fim do seu expediente. Resmungou qualquer coisa que fizesse o merdinha entender como um cumprimento, de modo que não o motivasse a interromper seu caminho para dar início a uma conversa amistosa, mesmo que não tenha entendido palavra sequer pronunciada.
Um cigarro não seria o suficiente para que pudesse protelar pelas próximas duas horas, quando se encerrava enfim o seu expediente, e imaginou que talvez se trancar no banheiro fosse uma saída para não concluir as dezenas de formulários e relatórios que estavam empilhados na mesa. Deu seu último trago e um peteleco na guimba, atirando longe o cigarro, amassou o maço vazio... "Foda-se", pensou entrando no elevador e pressionando o botão do sexto andar, entrou no escritório caminhando firme, desligou o computador, pegou sua mochila e foi embora. Ser demitido era questão de tempo, e este tempo estava se estendendo mais do que o esperado, e já contabilizavam três meses de tentativas, em meio a atrasos, almoço sem retorno e distribuição gratuita de seu mau humor por todo o escritório... nem mesmo a delicinha da recepção escapou de suas investidas por uma demissão, aturando calada seu mau humor, aquela gente, não reclamava.
Comprou um novo maço na birosca mais próxima do prédio, colocou os fones no ouvido, correu atrás do ônibus e se imaginou em casa, largado no sofá, aguardando o download do filme, comendo qualquer coisa de preparo instantâneo, o ar condicionado ligado no máximo e um pornô antes de ir dormir. O trânsito estava lento, e quanto mais ouvia as buzinas dos carros, mais pensava no seu fim de noite, tranquilo em casa e sozinho, era só o que precisava. O telefone toca:
- Oi meu amor, vou na sua casa mais tarde!
- Oi meu bem...
- Quer que eu leve alguma coisa pra comer?
- Pode ser...
- Depois a gente se fala, um beijo bem grande meu lindo.
- Outro.
Era sua namorada, destruindo seus planos de passar a noite sozinho, desfrutando de sua própria paz. Ela já havia dormido em sua casa três vezes naquela semana, o que era bom, mas as vezes
cansativo, pois dormir de conchinha todos os dias incomodava e dizer isso a ela não era uma opção. Somente três motivos o impediam de ser honesto:
* Ela surtaria, gritaria e talvez até terminasse o namoro pensando que não era benvinda naquela casa, que sua presença incomodava e que o amor não era mais o mesmo.
* Ela choraria até dormir, e dormir com uma mulher triste seria impossível, pois ela acordaria triste e por mais que não gritasse, pensaria que sua presença incomodava, e isso renderia um dia inteiro de conversas profundas e sem sentido;
* Ela poderia pensar que estaria dormindo com outra, ou que faria alguma orgia com dezenas de mulheres;
Independente da reação, por mais suave que fosse, dispensar a presença da namorada acabaria em alguma desgraça que faria com que a possibilidade de manter a relação fosse completamente anulada, sendo assim, pensou que talvez fosse melhor dormir mais uma noite com sua amada.
Na realidade, até gostava de que a mesma fosse para lá, mas algumas vezes isso acabava com sua privacidade, se tornava difícil pensar em seus próprios conceitos, organizando suas ideias, ou ainda de ficar um tempo fazendo o que gosta, como ver filmes com muitas explosões e trocas de tiro, ver seu pornô e jogar um pouco de videogame. Sua presença algumas vezes impedia até que a visita de seus amigos para uma competição de futebol com o último jogo lançado para seu console de videogame, fosse realizado, podendo se afirmar ainda como o melhor entre seus amigos e aumentando sua pontuação. Não... essa seria mais uma noite dela, em que ela prepararia algo fresco para comer, invadiria o banheiro durante a defecação dizendo que não se importava com isso, e faria de tudo para assistir algum programa chato na televisão, pesando a cabeça no seu peito e tentando obter comentários humanizados a respeito do sensacionalismo exibido na televisão.
Não era um tempo perdido, até gostava de fingir ser casado e ficar em casa com seu broto, mas quase todos os dias... era muita sacanagem e um tipo de sacanagem que não se encaixava em seus planos. Após um ano vivendo desta forma, adiava ainda mais sua vontade de se casar, e o que pretendia realizar em no máximo três anos e meio, se estendia entre cinco e nove anos, para que desse tempo de aproveitar a pouca liberdade que ainda lhe restava.
- Que merda... amanhã é feriado.
Nos seus planos, passaria a noite sozinho, acordaria a hora que quisesse e a veria somente depois que o sol estivesse mais fraco, no final da tarde, mas a princesa iria dormir lá, acordaria cedo e pediria a ele que fosse comprar pão antes das nove horas da manhã, limparia a casa expulsando-o dos cômodos em que se refugia, para limpar o chão, conversaria muito durante o almoço, levaria pelo menos uma hora e meia se arrumando para uma voltinha no shopping para enfim oferecer um pouco de sexo ao final do dia, e dormiria lá de novo. Estava difícil, mas era necessário.
Ainda dentro do ônibus enfrentando o trânsito lento, começou a se sentir desconfortável devido a mudança de planos e os novos pensamentos que açoitaram o consciente, e uma vontade imensa de defecar se aproximava, mas, seu único objetivo era poder usar o banheiro antes que seu broto chegasse, evitando o entra e sai dela no banheiro, as conversas de porta aberta e a desconcentração para excretar seus dejetos. Ela não se importava com o cheiro ou ainda com o fato de ver um homem sentado ao vaso sanitário, dizendo que não se importava e em momento algum se questionava se ele se importava. Ele se importava... e muito, neste caso o comportamento dela inibia completamente sua vontade de defecar, e ao invés das fezes saírem apesar da força, o efeito causado era inverso, e algumas vezes ficava tão estressado que poderia sentir que suas fezes recuaram a ponto de voltar para o estômago, fazendo com que ficasse mais quinze minutos afogado em pensamentos, imaginando seu estômago cheio de merda, tornando-o enfermo e morrendo ainda sentado ali.
Precisava chegar em casa, e precisava chegar rápido! Antes dela... para poder defecar em paz, ou seria mais um dia de prisão de ventre, causando cólicas, desconforto, e um inchaço abdominal que o impedia de vestir sua bermuda jeans de ficar em casa. Apesar de nunca ter tido intimidades espirituais com o Deus de que todos falavam, nunca se viu em oração tão enfática, fazendo promessas absurdas, para que Deus abrisse seus caminhos e o levasse em casa, para o que chamava de "uma cagada digna".
Pensou se Deus não estaria o odiando ou o Diabo lhe amando, pois quando chegou na porta do prédio, lá estava ela, tentando enviar uma mensagem para o seu celular, alguém estaria zombando de suas necessidades fisiológicas e novamente sentiu suas fezes recuarem, desta vez a sensação chegava até o pescoço. Abriu um sorriso amargo e seguiu em sua direção, subiram as escadas até o terceiro andar e quando chegou na porta, ela lhe entregou as bolsas e disse que ia correr até a farmácia, "é rapidinho!". Deus e Diabo inverteram seus papéis, pois era um milagre ela não pedir para ele ir comprar o que quer que fosse, seja um produto de cabelo com nome estranho, seu absorvente ou ainda o anticoncepcional.
Este era seu momento! Pegou as chaves depressa e procurou a chave que abre a porta, no nervosismo deixou-as cair no chão, xingou e tentou abrir a porta novamente e em um impacto, abriu a porta e bateu violentamente, pulando o sofá e correndo para o banheiro. Tirou toda a roupa acendeu um cigarro e desfrutou de "sua cagada digna", e então estaria pronto para aturar qualquer coisa.
- Edélcio! Cheguei... ta no banho? Por que as minhas bolsas estão no chão?
- Acho que caiu!
- No meio da sala??
E ele sorriu, como numa propaganda de laxante.

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